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Quinta, 21 Outubro 2021 11:49

Balsa industrializa açaí e promete transformar vida de ribeirinhos na Amazônia

Seu Raimundo Porto e seus vizinhos, pequenos produtores agroextrativistas do município de Coari (AM), no coração da Amazônia, se encheram de esperança ao ouvir pelas ondas do rádio uma boa notícia. No dia 24 de maio de 2021, em plena pandemia de Covid-19, foi anunciado que chegaria à cidade uma promissora fábrica flutuante de açaí.

A perspectiva de ter uma unidade de processamento por perto animou seu Raimundo, que produz cerca de 150 sacas (60 quilos) de açaí por safra. Todo ano, ele enfrenta dificuldades para vender sua produção. As longas distâncias, seja por terra ou pelo rio, e a falta de compradores são desafios enfrentados por ele – e pela maioria dos produtores no interior da Amazônia.

A comunidade de São Francisco do Laranjal, no Lago Mamiá, na bacia do Rio Solimões, onde vive seu Raimundo, fica a nove horas de barco da capital, Manaus. Ele gasta duas horas navegando em sua rabeta (canoa de madeira com motor de popa) para transportar o açaí até o centro de Coari, a cidade mais próxima.

Com 52 anos, ele conta que extrair o açaí no meio da floresta não tem sido fácil. “Tenho problema de coluna. Como a maioria dos agricultores da minha idade, não consigo mais subir no açaizeiro pra coletar. O trabalho do açaí é muito pesado, não dá para fazer sozinho. Eu pago a diária de ajudantes.”

Ele já plantou “roça” (mandioca e banana), mas há dez anos, quando o preço do fruto se valorizou, resolveu investir. Teve certeza de que fez o investimento certo quando deparou com a fábrica flutuante de mais de 80 metros de comprimento, imaginando todo o benefício que aquela embarcação poderia trazer para a região. “Fiquei maravilhado e encantado; nunca tinha visto uma indústria na vida, muito moderno. Para o agricultor, nunca houve uma oportunidade tão grande em Coari.”

A evolução da cadeia produtiva do açaí tem papel fundamental na conservação ambiental e no desenvolvimento social e econômico da Amazônia. A atividade enfrenta desafios para crescer e atingir todo o seu potencial. Uma série de iniciativas pode impulsionar a produtividade e tornar o fruto roxo da floresta ainda mais lucrativo e sustentável.

Como a maioria dos agricultores da minha idade, não consigo mais subir no açaizeiro para coletar” Raimundo Porto, açaizeiro da comunidade de São Francisco do Laranjal Apesar do crescimento dos plantios comerciais, a maior parte do açaí brasileiro ainda vem do extrativismo. Muito desse produto, porém, resultado do trabalho de ribeirinhos em comunidades isoladas na Amazônia, nem chega ao mercado. Devido a sua natureza extremamente perecível, o açaí perde valor econômico, pois não há como ser comercializado ou processado em comunidades distantes da capital. À mercê de atravessadores, que lhes pagam uma ninharia, os extrativistas, muitas vezes, chegam a abrir mão de se embrenhar na floresta para coletar o fruto.

É o caso de Davi Coelho de Souza, de 54 anos, da comunidade do Lago Acajatuba, no município de Iranduba, às margens no Rio Ariaú, afluente do Rio Negro. Ele conta que a dificuldade é enorme, mesmo vivendo a duas horas de barco de Manaus. “Quando o atravessador não vem, eu mesmo tenho de levar para a cidade, e aí fica muito caro.”

Seu Davi trabalha junto com os filhos, Rodrigo e Davi. Os dois jovens demonstram uma espantosa agilidade ao escalar as palmeiras nativas em busca dos cachos de frutos, a mais de 20 metros de altura. Para subir, eles apoiam os pés no caule da árvore, com a ajuda de uma peconha, laço feito de pano ou palha trançada. Usando a força dos braços e das pernas na escalada, conseguem colher até 100 sacas por ano.

Enquanto a extração dos frutos acontece no meio da floresta, uma indústria flutuante de açaí passa à porta das comunidades. A balsa foi uma aposta do empresário Irani Bertolini, presidente e fundador das empresas do Grupo Bertolini. Gaúcho de Bento Gonçalves (RS), ele chegou a Manaus nos anos 1970. “A minha origem é do interior. Meu pai era agricultor. Depois, a gente foi para a cidade, mas minhas origens permanecem”, lembra. Hoje, os negócios do grupo estão em vários ramos, mas, para criar oportunidades no interior do Amazonas, Irani investiu na construção da balsa-fábrica. Entre os objetivos do projeto está a compra do açaí fresco, evitando, assim, os atravessadores. Também espera-se que a solução ofereça um preço justo e gere mais renda nas comunidades ribeirinhas.

A balsa é uma verdadeira indústria itinerante, equipada com impressionante infraestrutura: carrega um sistema de energia solar, internet por satélite e estação de tratamento de água e efluentes. O projeto foi executado em parceria da Bertolini com a Valmont Solutions, que criou o sistema de energia elétrica, com 675 painéis solares e 64 baterias off-grid, capazes de armazenar 883 kWh.

Com 2 mil metros quadrados de área construída, a balsa-indústria vai operar nas calhas dos rios Madeira, Solimões, Amazonas, Juruá, Purus e Japurá. A câmara frigorífica da embarcação tem capacidade para processar até 30 toneladas de fruto por dia e estocar até 300 toneladas de polpa. Até os caroços de açaí que sobram da produção são aproveitados: junto com o lixo orgânico, são queimados numa caldeira que aquece toda a água utilizada a bordo, e as cinzas geradas são doadas como adubo às comunidades.

Irani Bertolini conta que a ideia de construir a balsa surgiu observando as mazelas das comunidades ribeirinhas. “A gente vê a necessidade dos caboclos, porque eles enfrentam uma dificuldade enorme, principalmente a complexidade da logística. Manaus é uma ilha cercada de floresta”, diz ele, com conhecimento adquirido trabalhando na Amazônia há mais de 40 anos.

A empresa nasceu no ramo rodoviário e hoje opera mais de 300 balsas nos rios da região, transportando cargas como motocicletas fabricadas na Zona Franca de Manaus, medicamentos, insumos agrícolas e grãos produzidos no norte do país. A companhia investiu mais de R$ 20 milhões na construção da balsa para o beneficiamento do açaí, que demorou cerca de dois anos até sair do papel e materializar-se no estaleiro da companhia, às margens do Rio Negro. Em maio de 2021, a balsa-indústria estreou, zarpando rumo à cidade de Coari, com a missão de testar todos os equipamentos a bordo e inaugurar os trabalhos.

Na primeira viagem, toda a estrutura funcionou como previsto: linha de produção, câmara frigorífica, laboratório, caldeira, energia solar, cozinha e lavanderia, revela Fábio Gobeth, assistente da presidência da Bertolini. “E ainda voltamos com 120 toneladas de produto para casa”, acrescenta ele, que, junto com a tripulação, passou 30 dias de labuta em Coari e ficou muito satisfeito com o resultado.

A gente vê a necessidade dos caboclos. Enfrentam uma dificuldade enorme, principalmente na logística” Irani Bertolini, presidente e fundador da Transportes Bertolini. 

Gobeth conta que também houve momentos de tensão, quando os tripulantes sofreram um ataque de piratas do rio durante a navegação, mas, graças à ação dos seguranças armados da balsa, escaparam ilesos.

E lembra que, por se tratar de um projeto pioneiro e pelo fato de a indústria flutuante não ter endereço fixo, o processo de legalização junto aos órgãos competentes não foi tarefa das mais fáceis. Foi preciso criar uma instrução normativa e passar por duas auditorias para conseguir o registro no Ministério da Agricultura. Também conseguiram as devidas licenças da Agência Nacional de Vigilânia Sanitária (Anvisa) e do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).

Desde que deixou de ser exclusividade na base da alimentação das comunidades da Amazônia e conquistou o mundo, o açaí ganhou fama, se valorizou e virou quase uma commodity da floresta. O pequeno fruto roxo movimenta atualmente mais de R$ 3 bilhões e é exportado para dezenas de países, entre eles Estados Unidos, Japão, Austrália e Alemanha.

O último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que o Brasil produziu 1,5 milhão de toneladas de açaí em 2018. O Pará lidera a produção, com 1,3 milhão de toneladas. E os paraenses continuam turbinando sua produção com investimentos, aumento da área de plantio, uso de plantas modificadas geneticamente e manejo sustentável. O segundo maior produtor de açaí é o Amazonas, mas seu desempenho não chega a 100 mil toneladas por ano. Lá, a produção é 95% extrativista (frutos nativos da floresta). Quase não há açaí plantado. A produção amazonense, entretanto, vem aumentando, graças à abertura de novas unidades de processamento no interior. Com isso, muitos extrativistas estão passando a coletar mais frutos na floresta e se interessar pelos plantios.

Adilson Alves da Cruz, gerente da unidade de Coari do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam), confirma que houve muita procura por mudas e sementes melhoradas geneticamente para plantios na cidade. As sementes mais demandadas são as BRS Pará e BRS Pai d’Égua, que foram desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com a finalidade de aprimorar a produção de açaí.

Paraenses e amazonenses rivalizam sobre qual é o autêntico açaí, mas a verdade é que são espécies diferentes, como explica o engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Edson Barcelos. “São várias espécies de açaí, e três são as mais importantes. O açaí do Pará é o Euterpe oleracea, que é precoce, começa a produzir aos três ou quatro anos. O do Amazonas é o Euterpe precatoria, que é mais tardio e só produz em sete ou oito anos. E o açaí da Mata Atlântica, o Euterpe edulis, que foi muito utilizado para a produção de palmito e agora é explorado para a produção de frutos.”

Importantes pesquisas para a evolução da cadeia produtiva do açaí na Amazônia foram interrompidas durante a pandemia, como lembra Barcelos. Ele mesmo estava envolvido numa delas, sobre o ainda pouco estudado açaí do Amazonas. Outros projetos, porém, seguiram adiante, impulsionando o desenvolvimento da atividade durante a pandemia, como é o caso da balsa-indústria da Bertolini, além de outros implementados diretamente em comunidades pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS). Essas iniciativas são fundamentais para manter a floresta em pé e garantir um sustento digno para seus habitantes, historicamente abandonados à própria sorte.

Reconhecendo a carência de políticas públicas voltadas para a região amazônica, Virgilio Viana, superintendende geral da FAS, ressalta a importância do investimento em capital humano. Somente nos projetos relativos ao açaí idealizados pela entidade estão envolvidas 1.531 famílias de diversas comunidades em reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) e reservas extrativistas (Resex) espalhadas pela Amazônia. Nesses projetos, a fundação investe em todas etapas da produção da polpa do açaí − desde colheita, processamento, instalação de minifábricas, capacitação de pessoal e gestão do processo até o transporte do produto final. Entre as soluções para agilizar a colheita está o uso de longas hastes de alumínio com lâminas para cortar os cachos de frutos no alto das palmeiras.

Inusitadamente, até binóculos e estilingues são empregados, para que o peconheiro, que usa um laço nos pés para escalar as árvores, não perca tempo em palmeiras cujos frutos ainda não estejam maduros.

Nos projetos também estão previstos processos de certificação para garantir melhorias no comércio e a credibilidade do produto final, diz Marilson Silva, técnico coordenador da regional madeira da FAS. Todos se esforçam no sentido de que os negócios prosperem, tornem-se independentes e gerem mais lucro e autonomia para as comunidades.

A adoção do sistema agroflorestal, como acontece entre os produtores da colônia japonesa de Tomé-Açú, no Pará, também tem se expandido pela região amazônica. O agricultor Jailson Takamatsu conta que consegue obter alta produtividade em seus plantios adotando o sistema de cultivo sustentável inspirado na floresta. “Creio que esse sistema agroflorestal vai ser uma opção importante para a agricultura familiar de toda a Amazônia.” Em sua propriedade, ele produz cacau, dendê e açaí em consórcio. O sistema agroflorestal e a terra preta de índio são considerados técnicas agrícolas primitivas, por serem utilizadas pelos povos ancestrais na Amazônia há pelo menos 8 mil anos. Seja pelos acontecimentos do passado ou pelos resultados do presente, ao que tudo indica, as agroflorestas não sairão de moda. Pelo contrário, ganharão mais terreno, especialmente nessa parte do Brasil.

Fonte: Terrasolos

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