As ambições são grandes, talvez as as mais grandiosas desde que milhares de trabalhadores morreram na construção de ferrovias em meio às florestas do Brasil há mais de um século. A China tem tentado construir um “canal seco” em forma de uma estrada de ferro através da Colômbia, ligando o Caribe ao Pacífico. Investidores chineses anunciaram mais um enorme risco em Honduras, dois portos e uma ferrovia de 600 quilômetros de mar a mar. Em seguida, em maio deste ano, a China anunciou mais uma megaferrovia — quase 10 vezes maior — através de Brasil e Peru, que se estende de uma costa à outra da América do Sul.
Mas em toda a região, um grande empreendimento ferroviário chinês após o outro enfrenta a dura realidade política latino-americana, a resistência de grupos ambientalistas, e uma desconfiança crescente em relação à China. Enquanto a China se orgulha de suas iniciativas ferroviárias em todo o mundo, aqui na América Latina tem sido muitas vezes frustrada, mostrando como até mesmo as formidáveis ambições da China têm limites.
Agora, novos temores em relação ao crescimento econômico da China estão levantando dúvidas sobre o que o país chama de “diplomacia de ferrovia” como parte do que alimenta a dependência da América Latina em relação a Pequim.
A enorme ferrovia bioceânica através de Brasil e Peru, em particular, “será um teste crucial da coragem da China como uma potência global e do potencial para uma maior aquiescência na América do Sul em projetos com recursos da China”, disse o acadêmico brasileiro José Eustáquio Diniz Alves.
— Estamos experimentando o lado negativo do nosso excesso de confiança na China agora que uma opaca economia chinesa está em curso — acrescentou Alves. — Imagine o que acontecerá se essa ferrovia avançar de alguma forma, trazendo consigo a devastação ambiental e ainda mais alavancagem para a China em nossos assuntos.
Perigo da dependência de ‘Commodities’
Mais de cem anos atrás, os americanos estavam entre os estrangeiros que entraram no coração da América do Sul com ambiciosos planos de construir ferrovias. As ruínas de seus projetos grandiosos para a Amazônia brasileira, chamada Ferrovia do Diabo devido aos milhares de trabalhadores que morreram construindo-a, são o testemunho dos perigos de depender demais de exportações de commodities.
As autoridades abandonaram lentamente a ferrovia, cujas partes agora foram engolidas pela floresta, depois que os preços da borracha despencaram há várias gerações. Atualmente, a China é quem sofre uma série de contratempos com projetos ferroviários em toda a região, num momento em que a demanda por commodities da América Latina —como soja, minério de ferro, cobre e petróleo — recuou.
Em novembro passado, o México cancelou abruptamente uma oferta liderada pelos chineses para construir um sistema de trens rápidos de US$ 4,3 bilhões após acusações de que o governo mexicano favoreceu empreiteiros que faziam parte do consórcio.
Em Honduras, dois anos se passaram desde que os investidores chineses anunciaram a estrada de ferro que liga o Mar do Caribe ao Pacífico. No entanto, Miguel Servellón, um funcionário da agência estatal que promove o projeto, disse que “ainda falta percorrer um longo caminho para se concretizar”, listando obstáculos como um processo complexo de aprovação ambiental.
Em outro projeto com objetivo de encontrar uma alternativa ao Canal do Panamá, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, disse há quatro anos que Colômbia e China tinham um plano que estava “bastante avançado” para construir uma estrada de ferro que liga o Pacífico ao Caribe. Mas o clima mudou consideravelmente desde então.
— É um assunto que foi mencionado em 2011 e desde então teve relevância mínima — disse Daniela Sánchez, diretora da Câmara de Comércio Colômbia-China.
Na Venezuela, empresas chinesas já escavaram o solo para construir uma ferrovia de alta velocidade de 464 quilômetros, parte de um grandioso plano do ex-presidente Hugo Chávez pra reequilibrar a população, tirando-a da costa.
Mas enquanto o governo da Venezuela se gabou de que o serviço de passageiros teria início em 2012, o projeto tem se arrastado por anos com paradas de trabalho e dinheiro insuficiente do lado venezuelano. As autoridades chinesas dizem que mais de metade da estrada de ferro foi construída, embora a mídia venezuelana tenha informado em junho que os campos de trabalho tenham sido abandonados.
— O processo teria sido mais rápido se tivéssemos dinheiro em excesso — afirmou Liang Enguang, vice-gerente-geral da unidade venezuelana da Corporação de Engenharia Ferroviária da China.
Um projeto ainda maior foi sugerido por um magnata chinês de telecomunicações. Um canal de 464 quilômetros através da Nicarágua, concebido como um rival para o Canal do Panamá, foi recebido com grande ceticismo sobre sua viabilidade, bem como protestos de agricultores que vivem ao longo da rota proposta.
Apesar dos obstáculos, a China pressionou para levar à frente a ferrovia bioceânica entre Brasil e Peru, devido ao comércio entre China e América Latina que subiu de US$ 12 bilhões em 2000 para US$ 285 bilhões em 2014, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional.
Esperança e temor em Lucas do Rio Verde
Lucas do Rio Verde, uma região agrícola de 70 mil pessoas no Mato Grosso, fica no meio do que seria a rota de 5.280 quilômetros, e alimenta expectativas de que possa se tornar um grande polo de transporte agrícola. Mas nas sombras dos silos de grãos que se elevam sobre campos de soja e da fábrica de processamento de carne aqui, as respostas muitas vezes mostram mais desânimo do que alegria.
— Não tenho dúvidas de que a China tem dinheiro e conhecimento para fazer isso acontecer — disse Ricardo Tomczyk, presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja). — Mas sabemos que a burocracia do Brasil é mais formidável do que a construção de uma estrada de ferro em meio aos picos dos Andes.
Já os que apoiam os empreendimentos chineses argumentam que a desaceleração da economia chinesa é apenas um pontinho na ascensão da China na América Latina. Embora alguns economistas tenham observado o declínio nas reservas de moeda estrangeira da China, ainda espera-se que os bancos chineses e as empresas de engenharia tenham grandes fundos para o projeto de US$ 10 bilhões, apesar da recente queda da moeda chinesa, o yuan.
De fato, alguns analistas políticos dizem que o declínio nos preços das commodities e da economia cambaleante do Brasil poderia realmente melhorar o poder de barganha da China, ajudando-a a persuadir as autoridades locais a aceitar os termos chineses para a estrada de ferro.
— A não ser que haja uma crise mais intensa na China, os investidores chineses ainda têm um enorme poder financeiro, muito maior do que o dos tensos agentes do mercado brasileiro — disse André Nassif, economista da Fundação Getulio Vargas.
Ainda assim, líderes políticos, agricultores e ambientalistas estão de olho nas dificuldades da China em completar ferrovias no resto da América Latina. Eles apontam a chata burocracia do Brasil, suas leis que proíbem a China de contratar seus próprios trabalhadores, uma rede de tribunais auditores, e a capacidade de dezenas de diferentes promotores de paralisar megaprojetos com ações judiciais.
— Acima de tudo, temos um governo muito frágil — disse Otaviano Pivetta, prefeito de Lucas do Rio Verde, que lembrou as pressões sobre o governo da presidente de Dilma Rousseff, inclusive a sombra de um impeachment. — Claro que quero que isso aconteça (a construção da ferrovia), mas não podemos ignorar os obstáculos.
Maior parceiro comercial do Brasil
A China já superou os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil. Mas enquanto a demanda chinesa por commodities alimentou o crescimento das cidades agrícolas, como Lucas do Rio Verde, as exportações de soja e milho ainda são em grande parte levadas para portos em vias públicas deploráveis. Trechos de estrada permanecem não pavimentados, aumentando os custos de frete. Quando chove, alguns caminhoneiros simplesmente ficam presos por dias ao longo de trechos enlameados.
Estudiosos das ligações da China com a América Latina dizem que a estrada de ferro proposta iria bem além do corte de custos de transporte, refletindo os esforços de Pequim para garantir matérias-primas, melhorar sua segurança alimentar e encontrar novos mercados para as empresas de engenharia e ferrovia chinesas num momento em que o crescimento econômico do país desacelera.
— Os chineses não acreditam piamente que os EUA não vão tentar limitá-los em determinados pontos estratégicos — disse R. Evan Ellis, professor de estudos latino-americanos do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército americano. Ele destacou também a dependência chinesa de rotas de navegação, como o Canal do Panamá.
Alguns líderes políticos no Brasil e no Peru têm recebido bem a proposta chinesa, avaliando sua seriedade pelo fato de Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês, ter promovido o projeto pessoalmente ao visitar ambos os países, em maio. As autoridades chinesas concordaram em entregar um relatório de viabilidade em cerca de um ano.
Os governadores de três estados da Amazônia brasileira que serão cortados pela ferrovia expressaram apoio ao projeto. Mas até mesmo alguns que têm a ganhar com isso reconhecem que há grandes desafios.
— Não quero ser pessimista sobre a ferrovia, mas vai ser muito difícil — afirmou Marino Franz, ex-prefeito de Lucas do Rio Verde.
Políticos poderosos e empresários, cujos portos em rios e centros de processamento de soja podem ser ameaçados pela ferrovia, também detonam o projeto chinês.
— Não acredito nisso — disse o senador e ex-governador do Mato Grosso Blairo Maggi no Senado.
Além da oposição de interesses entre poderosos do agronegócio brasileiro, grupos ambientais também apresentam resistência à ferrovia, alegando que poderia acelerar o desmatamento na bacia do rio Amazonas.
As leis trabalhistas brasileiras, que dificultam a contratação de estrangeiros pelas empresas, também são outro obstáculo frente às ferrovias africanas que foram construídas por trabalhadores chineses.
Além disso há os problemas de infraestrutura do Brasil. Um megaprojeto atrás do outro foi paralisado ou abandonado nos últimos anos, seja por corrupção, falta de dinheiro, entraves burocráticos, excesso de custos ou todos esses motivos juntos.
— Com todo o respeito, os países africanos estão um pouco mais desesperados — disse Kevin Gallagher, acadêmico da Universidade de Boston, que estuda incursões da China na América Latina. — Na América Latina, há mais burocracia, algumas delas boas, algumas ruins.
É claro que outros projetos de infraestrutura chineses têm feito progressos na América Latina, ajudando a remodelar a região. Na Argentina, onde as empresas chinesas estão atualizando uma rede de carga em ruínas, as importações de materiais ferroviários e trens da China chegou a cerca de US$ 700 milhões em 2014, acima dos US$ 50 milhões em 2011. No Equador, os bancos estatais chineses já colocaram quase US$ 11 bilhões no país para a construção de uma barragem, de estradas, rodovias, pontes e hospitais.
Alguns argumentam que no Brasil as empresas chinesas estão aprendendo com as vitórias e derrotas. A Sinopec, produtora chinesa de energia, construiu um gasoduto de US$ 1,3 bilhão no Brasil. Agora, as autoridades brasileiras estão investigando alegações de superfaturamento na obra.
Com a economia do Brasil em dificuldade, algumas autoridades sinalizam que podem estar dispostas a aceitar a proposta da China, sugerindo, ao mesmo tempo, que a ferrovia poderia ser construída em um projeto menos ambicioso, fragmentado.
— A Ferrovia bioceânica poderia ser feita em partes — afirmou o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, em depoimento ao Senado.
Gallagher disse que a estrada de ferro está entre os maiores projetos de infraestrutura da América Latina nos últimos cem anos
— A China vai ter que acelerar a curva de aprendizado para que isso seja possível — disse ele. — Se os chineses não puderem fazer isso acontecer, então ninguém pode.
Extraído de: Extra
Segunda, 05 Outubro 2015 07:59
Ferrovia bioceânica testa ‘diplomacia de trilhos’ da China
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